sábado, 14 de junho de 2008

SERMÃO: Para quem está no Getsêmani.

Lucas-22.39-46
39-E saindo, foi como costumava, para o monte das Oliveiras; e também os seus discípulos o seguiram.
40-E, quando chegou àquele lugar, disse-lhes:”orai, para que não entreis em tentação.
41-E apartou-se deles cerca de um tiro de pedra; e, pondo-se de joelhos, orava,
42-Dizendo; Pai, se queres, passa de mim este cálice; todavia, não se faça a minha vontade, mas a tua.
43-E apareceu um anjo do céu, que o confortava.
44-E, posto em agonia, orava mais intensamente. E o seu suor tornou-se em grandes gotas de sangue que corriam até o chão.
45-E, levantando-se da oração, foi ter como os seus discípulos e achou-os dormindo de tristeza.
46-E disse-lhes: Porque estais dormindo? Levantai-vos e orai para que não entreis em tentação.

O sofredor, manchado de sangue, e agonia de espírito, abandonado, ainda tem todo o céu a seu chamado.

No evangelho de Lucas, a história de Jesus e Seu sofrimento no jardim chamado Getsêmani nos mostra primeiramente uma mudança radicalmente mortal, desesperadora e pavorosa de uma comunhão agradável da Ceia com os discípulos para a solitária e agonizante batalha experimentada na busca pela presença de Seu pai junto a Si para enfrentar a “hora chegada”, a hora crítica da consumação de Seu existir salvífico. Seu sacrifíco já era de certa forma ali iniciado.
Cristo leva consigo os Seus amigos ao jardim, procura alguma consolação pelo menos nos seus três mais queridos amigos, e eles dormem; pede-lhes que se conservem um pouco com Ele, e eles deixam-no com uma inteira negligência, tendo tão pouca compaixão. Que esta nem sequer os impede de dormir um momento. Jesus exorta seus amigos à fervorosa e intensa oração, porém, Ele retira-se à distância de uma pedrada, o que não impedia de ser ouvido, porém é abandonado e em profunda solidão se põe de joelhos e ora. Jesus já não conta com eles, mergulha em Sua solidão e faz evidenciar em Si uma humanidade ainda não percebida. É a mais clara e evidente demonstração da humanidade presente na pessoa de Jesus. Era o homem, entregue à própria sorte, sem auxílio, socorro, privilégios. Embora sempre presente, o Pai de Jesus ali se calou e se fez ausente da perspectiva do Filho. Era esse portanto o grande motivo de agonia: a sensação de desamparo e abandono, o mergulho à mais completa solidão que vivieria até o momento crucial do Gólgata . Jesus evidencia não somente a humanidade na perda do total privilégio de Sua própria divindade, mas fundamentalmente em decidir experimentar em sua carne todas as nossa mais profundas tragédias, misérias e angústias.Veio sofrer todo o sofrimento humano, carregou sobre Si os pecados do homem, entretanto sem jamais pecar e, portanto, sofreu o isolamento e abandono da parte de Deus que caracteriza os pecadores.
O Pai de Jesus estava ali, porém teve que se calar, não pôde passar o cálice de Seu Filho, não pôde lhE tomar pelos braços e consolá-lo. Sua vontade era então feita, Jesus se entregava à confiança e certeza de estar cumprindo o que o Pai O mandara.
Que coragem Jesus demonstra em decidir ir ao Getsêmani para esperar a hora crítica, Ele escolhe o Seu lugar costumeiro de orações mesmo sabendo que Judas, o que havia de traí-lo conhecia aquele lugar, e que provavelmente ali seria preso. Mas era ali que Jesus encontrava inúmeras lembranças que podiam aumentar a Sua fé e Sua confiança em Seu Pai. Quantas vezes ali mesmo Jesus teve de Seu Pai palavras de força, de esperança, de certeza e confirmação para continuar a caminhar e enfrentar os “poderes de seu tempo” e a agir na causa do Pai, o Reino. Ali o sofrimento tinha que ser completo, tinha que ser humano. O que Jesus possuía eram as lembranças, palavras, orações ecoadas em clamores, à quais travava intensa batalha para que fossem ouvidas e respondidas por Seu Pai.
Em agonia, por travar uma batalha entre Seus clamores e o silêncio de Deus, há um suar de sangue tocando ao chão que denuncia o total desespero e limite físico frente ao pavor de enfrentar tudo de maneira solitária. Mas haveria de ter um levantar vitorioso de Jesus das orações do Getsêmani. E de fato Cristo ali em depositar sobre a vontade de Seu Pai uma total entrega e confiança, vence e se levanta Vitorioso. Naquele jardim o paraíso foi reconquistado. Jesus levanta-se mais forte e convicto para executar até o fim os planos de Seu Pai. O Seu destino depois do Getsêmani era a cruz, o mesmo sangue que escorrera de seu rosto como denúncia de Seu pavor tocaria mais tarde o chão do Gólgota, não para a Sua derrota mas parar transformar a própria cruz em trono.
Todos nós, à espera da “chegada da hora”, hora crítica, podemos ser levados ao Getsêmani, onde assim como Jesus podemos ser “ abandonados” e Deus pode Se calar. Mas temos o levantar vitorioso de Jesus como o nosso próprio levantar. Vislumbramos na história de Jesus no jardim chamado Getsêmani três fundamentais lições:

1- Todo o “não” de Deus é circundado por um grandioso e salvífico “sim”.

O calar de Deus e Seu afastamento na história de Jesus no Getsêmani tem que ser percebido como o contundente Não a Jesus. Porém esse emudecimento, ou abandono sentido por Jesus, visto que, era Cristo quem não sentia a Sua presença naquele lugar e isso O leva a cada vez mais buscar de maneira humílima a Deus em Seus clamores. “ E posto em agonia orava mais intensamente” Era através daquele sofrimento, que aprendemos sobre obedecer, mesmo quando não ouvimos a quem nos ordena. Através da própria consciência, as lembranças de Jesus a respeito de Seu Pai e a certeza, apesar de tudo, de que corria tudo conforme os planos daquEle que até aquela hora e desde antes da fundação do mundo em nada havia falhado, o sustentavam ali.
Somos levados ao Getsêmani, experimentamos o “não” de Deus, Seu silêncio, abandono e todos os possíveis efeitos de tal sofrimento: os psicológicos, físicos e sociais. Formulamos então um ideal de Deus por demais iracundo e déspota. Estamos prontos a negar este Deus. Até a hora que percebemos que assim como em Jesus, a consciência deve falar e as lembranças se sobreporem ao temor.
Enquanto batalhamos com Deus, insistindo que o “cálice seja passado de nós”, perdemos. Não levantaremos vitoriosos. Mas quando decidimos seguir nossas lembranças sobre o Deus que nos retirou do charco de lama mais pútrido de todos e que de maneira misericordiosa, totalmente imerecida, por um amor inexprimível e inteligível a nós, que beira o constrangimento, pois jamais devolveremos de maneira recíproca, resolveu nos alcançar com sua graça, nos limpar, dar novas vestes e nos chamar de filhos, não se importando com o quão infiéis continuamos a ser. E tudo isto por um preço pago à custa de sangue, dor e morte. Nossa consciência tem então que falar, pois o Deus ao qual professamos a nossa fé, esse Deus da vida é imutável e Seu inevitável “não” se acha circundado por Seu “sim” em favor do ser humano. Desta forma, tudo o que Deus quer e faz para o ser humano e com o ser humano representa obra prestimosa e salvífica.
Eis então que descobrimos que a voz na consciência é o próprio Deus falando de maneira amorosa: levante- se vitorioso, vença clamando o “todavia, não seja o que eu quero mas o que tu quer”. É somente aí que reconquistamos o paraíso, confiando, tendo paciência e percebendo a verdadeira voz de Deus falando constantemente em nossa consciência, que surge com o nosso próprio clamor de total entrega e dependência.

2-Perceba o conforto de Deus não somente acima, mas ao lado ou mesmo abaixo de você.

“...E apareceu-lhe um anjo do céu que o confortava”.
Sempre que lia este trecho em Lucas eu me indagava: como pode o Senhor ser confortado por uma criatura Sua? Até que a palavra humildade me foi despejada dos céus. Humildade não pode soar como diminuição dos atributos divinos e incomunicáveis de Deus, mas em confirmação dos mesmos. Desta forma podemos aprender a esperar o auxílio, o conforto, a ajuda requerida a Deus e de maneira exclusivamente vertical, vindo de pessoas simples e coisas comuns. Não podemos negar jamais que toda a força, e conforto vem mesmo de Deus, mas Ele fez de Suas criaturas ministros Seus para trazê-los. Evidenciar na face destes a própria face de Deus é não negá-lo, é necessário e vital. Romper o orgulho é uma tarefa difícil à maioria de nós, o sofrimento de certa forma hoje é apresentado por boa parte da igreja brasileira como sintoma de falta de fé. Essa “ordem teológica” de confissão positiva vendida nos púlpitos tenta abolir completamente o sofrimento, o que se antagoniza com o próprio sentido do existir cristão, onde, apesar de todo o sofrimento ainda ter a capacidade de não parar de amar e viver. Podemos até não parar de amar, mas nos calamos. O sofrimento nos torna mudos, nos aliena, nos isola. E expressa-lo aos que estão próximos pode fazer surgir a voz que tanto esperávamos de Deus.
O conforto de Deus pode sim estar ao lado, ou mesmo abaixo, em pessoas humildes e sem recursos, mas prontos a participar e dividir conosco o nosso sofrimento e se quebrantar por nós diante de Deus clamando com o rosto em terra.

3- Perceba em você o anjo capaz de confortar.

As vezes fechamos os olhos aos sofrimentos alheios. É impressionante o fato do quão insensíveis somos capazes de ser quando se trata do sofrimento alheio. Geralmente não damos um passo sequer em direção ao sofredor, mesmo que este esteja perto, dividindo a mesma casa, emprego ou mesmo o banco da Igreja, nos tornamos cegos e surdos. Mesmo quando chegamos a perceber o sofrimento latente ao nosso redor, transferimos a carga para Deus. Claro, isso é inconteste, é Deus quem dá a força e o conforto, mas estes podem sim vir por nosso intermédio. Se focamos a história do Cristo agonizante no Getsêmani como o inicio de Seu calvário, ela terá sempre que ser uma lembrança de que o sofrimento dos oprimidos deve ter um fim.
Vemos as gotas de sangue escorrendo até o chão, lamentamos, mas no fundo damos graças por não serem as nossas. Negligenciamos o fato de o nosso próprio Senhor, que pôs o rosto em terra e clamou intensamente em agonia profunda de espírito, continua a clamar naqueles que sofrem, que foram emudecidos e estão sob constrito. O Deus a qual professamos nossa fé diz de Si mesmo que habita no alto e Santo lugar, mas habita também com o contrito e abatido de espírito(IS 57-15) Evidenciar Deus na face dos que sofrem, e sofrer com Eles. Eis a forma mais digna de sofrimento: o que pretende dar fim a toda forma de sofrimento.
A opressão, não importando mais se a sua origem é econômica, espiritual ou política, coloca sobre a face do oprimido o próprio Deus, o mesmo Cristo sofredor do Jardim Getsêmani. Estender as mãos ao que clama, não permitir que o sofredor se mantenha isolado, cego, mudo e surdo incapaz notar que Deus está sim presente, é papel de todo filho tomado em graça e comprado por preço de muito sofrimento.
É claro que qualquer espécie de sofrimento é uma experiência absurda, pois opõe-se ao propósito de Deus para Sua criação. O sofrimento que se experimenta, poderá, todavia ter sentido quando é resultante de uma opção clara pela vida, pelo fim de toda e qualquer forma de sofrimento, principalmente quando se trata de sofredores inocentes. O sofrimento do mundo não pode acontecer sem que faça os filhos de Deus se verem também perturbados por ele. A salvação é um dom da graça de Deus, mas que demanda uma resposta concreta num ato de profundo comprometimento com aqueles que sofrem no mundo.